o gosto pelas lacunas

.: Se alguma vez alguém me perguntar o que eu procuro, ou descubro, quando leio uma obra, acho que saberei como responder. Essa questão, que é apenas uma versão mais sofisticada do bom e velho “pra que isso serve?” e que eu mesma me faço, dia sim dia também, ajuda sempre a colocar as coisas em perspectiva e reafirmar meu gosto pela literatura e pela crítica literária.
É que eu não sei o que eu procuro quando leio um livro. Acho até que eu não procuro coisa nenhuma; leio porque gosto muito de ler, gosto a ponto de ler porcarias e nem ficar muito brava pois isso me permite falar mal delas com propriedade. Porém eu me reconforto em saber, com precisão, o que é que não procuro nem encontro quando leio (sobretudo quando analiso) um romance, um conto, um poema, um parágrafo sequer: conformidade. Foi fundamental, na minha formação, que a ideia de representatividade entre o mundo e a literatura fosse dizimada. Ou entre a realidade e a ficção, que fica mais bonito dizer assim. Só é possível enxergar uma obra como mímese da realidade quando se acredita que a realidade, afinal, é transparente e possível de ser abarcada, que há um conjunto de valores e conhecimentos previamente dominados e que a literatura, sendo capaz de reproduzi-los e confirmá-los, também pode ser plenamente compreendida.
Mas se você não for um iluminista, como é meu caso, pensará que a realidade é complexa demais para ser inteiramente condensada em objeto e apreendida pelo sujeito, que é impossível esgotá-la, que com frequência somos colocados diante de impasses e indeterminações que eliminam, enfim, as  polpudas e tolas certezas. É mais ou menos nesse fio de navalha que eu me encontro toda vez que abro um livro: minha limitação diante das limitações da obra, de sua precariedade, seus enigmas, lacunas e problemas. Eu não acredito numa relação totalizante entre ficção e realidade. Quando muito, acredito que elas são complementares, que uma esclarece ali onde a outra falha e nesse diálogo a gente vai tocando.
Ou seja, não encontro respostas na literatura. Tampouco procuro reiterar, nela, o mundo tal qual eu enxergo (como fazem os conservadores). E também não a vejo necessariamente como instrumento de humanização, elevação ou reconhecimento da alteridade. Eu gosto da experiência estética e gosto de pensar a literatura como expressão humana. Mutável e imprecisa. Tendo escolhido como objeto de pesquisa uma narrativa mítica que aborda o nazismo e suas práticas, meu esboço de resposta à pergunta inicial é: até agora, encontrei na literatura apenas indícios de onde estão os impasses e conflitos não encerrados historicamente. Aprendi a ver, configurados formalmente no texto ficcional, os antagonismos que no mundo real não se resolveram e talvez não se resolvam nunca. E lidando constantemente com a incerteza, seja na compreensão da arte, seja no manejo da vida, satisfaço-me assim.

.: Há um monte de filmes e livros que eu ando querendo comentar aqui. A maioria deles fala sobre o nazismo, a Shoah, a guerra, os efeitos da violência. Vestígios de um mestrado que acabou, mas, claro, deixou várias arestas. Talvez esse post seja só meu ponto de equilíbrio, uma nota que eu devo consultar sempre que estiver diante de algo que eu simplesmente não saiba desvendar. Acontece, mas às vezes dá uma angústia dos diabos.

4 Respostas

  1. “Só é possível enxergar uma obra como mímese da realidade quando se acredita que a realidade, afinal, é transparente e possível de ser abarcada, que há um conjunto de valores e conhecimentos previamente dominados e que a literatura, sendo capaz de reproduzi-los e confirmá-los, também pode ser plenamente compreendida.”

    Nossa, eu gostei muito disso. Porque esse discurso da realidade como plenamente inteligível é autoritátio, no final das contas. Porque ignora que não é possível olhar de todos os ângulos possíveis, por mais que a gente se esforce. E por isso a literatura é tão rica: traz novos ângulos. Então é isso, esse exercício da alteridade, né? Tão rico que eu ia cair numa contradição agora mesmo, ia dizendo que não sei como tem gente que consegue viver sem. E claro que tem. Nada é absoluto assim. Nem a literatura.

    • “Autoritário” é uma palavra muito boa, eu acho. Vc pode ser autoritário na sua leitura, na sua relação com a literatura e mesmo com o mundo. As pessoas que tem muita certeza do que é a verdade, a realidade, de “como funcionam as coisas”, de quais são as intenções e motivações por trás de todo evento, são essas, justamente, que tendem a minimizar a experiência do outro. Seja experiência de leitura, seja experiência de vida. Tipo os professores que pautam as interpretações dos alunos como certas ou erradas, ou as pessoas que agem como se soubessem mais sobre o outro do que ele mesmo, que então é posto como coitado, como alienado.
      Agora, o exercício da alteridade, assim como a humanização ou a politização, eu acho, são abordagens pedagógicas viáveis. Leio porque me torno mais sensível, mais “cabeça aberta”, mais consciente, etc. Geralmente os professores de literatura usam isso como isca pra motivar o interesse dos alunos.
      Mas nas minhas leituras isso acaba não sendo o nervo mesmo. A indeterminação do texto pode ser até incompatível com a apresentação de “outros ângulos”, como vc diz. Por exemplo, um texto polifônico não necessariamente conduz a um ou mais “pontos de vista” diferentes do leitor. Pra isso seria preciso que o autor estivesse convicto, desde a escrita, de que seu leitor pensa de uma maneira x pra poder compor uma voz dissonante – e aí caímos nessa convicção autoritária do que é o mundo, o outro, etc. Um texto polifônico pode simplesmente estilhaçar a noção de integridade da voz narrativa, e de sujeito, por consequência. E então o leitor pode se perguntar o que, no texto, impede a plenitude, a integralidade do indivíduo. Esse tipo de pergunta pode te levar pra uma indeterminação histórica. No caso do romance que eu analisei, o pano de fundo era a guerra, o nazismo, os campos de extermínio. A polifonia pode não ser assertiva e didática, ela pode surtir o efeito contrário ao exercício da alteridade: ela pode pôr em xeque a própria noção de cognição e de indivíduo, que é fundamental pra que vc ouse querer conhecer o outro.
      Mais ou menos isso que eu quis dizer.

  2. querida Aline. Belo texto. adoro a fluidez de seus textos..

    a)acho interessante essa questão da reprodução da realidade pele literatura. uma vez li num livro que a linguagem é uma forma de apreender a realidade. mas em que grau e com que complexidade e precisão a apreendemos? que realidade? é uma realidade? certaz vez pensei, ou senti essa angústia: em que grau, com que precisão essa obra reproduz tal realidade. por exemplo, lendo Jorge Amado. Eu ficava me perguntando com que fidelidade Jorge Amado reproduzia a realidade que ele se propunha a reproduzir. Será que ele se sentia frustrado em algum momento por não ter conseguido ser fiel o tanto quanto gostaria? Será que eu estaria sendo iludido ao pensar que a obra era fiel aos fatos? Mas é como voce falou, “são complementares” (se é que foi nesse sentido que falou). Já senti a mesma angústia quando escrevi crônicas tentando reproduzir uma dada realidade, uma inclusive sobre a Bahia que gosto muito. Depois me tranquilizei pensando “não posso compreender jamais a totalidade”. Falando em reproduzir a realidade, podemos exemplificar com a fotografia. Mesmo ela, aparentemente um “retrato fiel” da realidade não consegue captar toda a relidade mesmo daquele quadro fotográfico, justamente por que existe as realidades por trás da realidade..

    b) adorei a expressão “experiência estética”. é isso mesmo. quem gosta de literatura, de ler, nem que seja pra falar com propriedade sobre uma obra fraca, se satisfaz com o contato, a experiência não só com o conteúdo, mas com as formas, o estilo, as particularidades, o ponto de vista, que eu chamaria aqui, não sei se indevidamente, de expressão literária. Um livro me chama atenção, a palavra impressa, a forma da letra, o espaçamento, o ritmo do autor, sua sensibilidade, seu carinho ou não com as palavras, sua sutileza, seu compromisso com uma linguagem aceitável, seu estilo…para mim, tudo isso é legal de perceber.

    Parabéns pelo post, como sempre voce escrevendo tão bem sobre assuntos que eu às vezes tenho vontade de escrever mais não encontro o ritmo, o conteúdo, nem as palavras certas…..

    abraços, abraços

    • oi Josue :)

      é, estamos bem afinados aí. essas questões de representatividade, realidade, limites do texto, bem entendido, são questões minhas. das minhas leituras, da minha postura como crítica. não acho que seja a única abordagem, que todo leitor deve se preocupar com isso.
      obrigada pela gentileza de sempre
      =**

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